Música caipira

Em 2006 publiquei o livro Moda Inviolada - Uma história da música caipira (Editora Quiron), onde, ao analisar as transformações pelas quais a música caipira gravada em 1929 por Cornélio Pires passou até se transformar na conhecida "música sertaneja", tracei um Mapa Cultural da Música Caipira. Assim, ao menos quatro vertentes da manifestação original de 1929 alcançaram o final do século 20: 1. Música caipira, que permanece pouco alterada em termos formais, considerada por aqueles que a defendem como um exercício de resistência cultural; 2. Música "sertaneja", ou o chamado sertanejo romântico, que abrigou influências de gêneros musicais estrangeiros (guarânia e rasqueado paraguaios, bolero e rancheira latino-americanos, rock e country americanos); 3. Influência da MPB, especialmente a mistura promovida por Renato Teixeira, Sérgio Reis e Almir Sater; 4. Viola instrumental, que mantém a referência do caipira ao passo que faz uma leitura erudita do instrumento.
Uma década depois e atalhos mostram mudanças nesse Mapa Cultural. Dois fenômenos justificam essa rápida mudança: o súbito aumento do estrato social intermediário, a classe média, a partir de políticas inclusivas conduzidas por um governo voltado à promoção social; e uma evidente transição de gerações de artistas musicais, de modo que a geração que construiu o panorama sonoro da segunda metade do século 20 consolida a sua obra, abrindo espaço para uma nova geração, movida por novos objetivos e ideário político. Ante esses fenômenos, as quatro vertentes registraram mudanças significativas. A própria MPB influenciada pelos acordes da viola caipira parece ter estagnado, fenômeno afetado pelo envelhecimento da geração e pela perda de artistas importantes, como a dupla Pena Branca (2010) e Xavantinho (1999), que fez releituras de músicas de Milton Nascimento e Caetano Veloso.
Enquanto a música caipira ligada à origem rural permaneceu sem demonstrar grandes oscilações em termos culturais, já que o ritmo do movimento de suas mudanças é bem mais lento que o dos demais ramos, a música sertaneja, hegemônica nas duas últimas décadas do século 20 a partir do fenômeno Chitãozinho e Xororó, passou por uma transformação até certo ponto inesperada. O surgimento do subgênero "sertanejo universitário", voltado ao público jovem, com temática romântica e ritmo dançante, aproximou ainda mais essa vertente do pop internacional, particularmente o calcado na folk music e no country americano.
Por fim, a música instrumental parece ter sido a que mais demonstrou evoluções. Antes representada somente pelas orquestras de viola e por violeiros pioneiros na leitura erudita do instrumento, Renato Andrade entre eles, ela viu surgir uma geração que passou a defender a viola como metáfora da resistência da cultura caipira, além de questionar a própria lógica da indústria fonográfica. Júlio Santin, Levi Ramiro, Pereira da Viola, Zeca Collares, Chico Lôbo, Milton Araújo, entre outros, passaram a defender um movimento musical identificado com o movimento social, especialmente com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Não é à toa que a Associação Nacional dos Violeiros do Brasil (ANVB) nasceu de uma idéia de Pereira da Viola e Mineirinho, coordenador cultural do MST. Já rendeu encontros nacionais, seminários e mutirões de cantadores. Algo que, em termos culturais, extrapola o fenômeno dos "coletivos" de artistas, que geralmente têm como objetivo principal revelar novos talentos para alimentar a indústria fonográfica. Como movimento organizado, os violeiros querem espaço na mídia, mas a partir de uma proposta musical que envolve identidade, história e recriação.